Maria, como prefere ser chamada,
foi vítima de violência doméstica. Aos 43 anos, com um filho de 12 para criar,
resolveu mudar de vida e pôr fim às agressões de que era alvo.
Olá, Maria. Este é um assunto
delicado mas mostrou muito interesse em falar dele e em dar o seu exemplo,
ainda que o dê sem dar a cara. Porquê?
Essencialmente
porque sofri calada durante muitos anos. Vivi presa a mentiras e nada compensa
este sofrimento. Nem mesmo o amor que sentimos por alguém que só nos maltrata. Quero
deixar o meu testemunho a outras mulheres que possam estar a passar pelo mesmo.
Porque é que opta por não dar a
cara?
Apenas
para me proteger dos olhares das pessoas que normalmente olham para as vítimas
de violência doméstica como coitadinhas. Não o sou e jamais quero ser vista
como tal. E também para proteger o meu filho que muito sofreu com estes
acontecimentos.
Quando fala da sua experiência a
outras pessoas, o que é que sente que elas sentem?
As
pessoas sentem pena. Julgam-me por não ter saído de casa há mais tempo e por
permitir que o meu filho tenha vivido assim…
É difícil sentir esse julgamento?
É.
É porque as pessoas não fazem ideia do que se vive exactamente dentro das
quatro paredes. Não sabem como é duro viver esta realidade.
Como é que começou esta história de
violência doméstica?
Começou
aos sete meses de gravidez. A atitude do meu marido, que já era muito ciumento,
mudou completamente. Começou a ser agressivo, a falar-me mal e a dizer que eu
não servia para nada e que ele é que sabia da casa dele. Fazia-me sentir inútil
em tudo. Só me apetecia desaparecer mas depois só pensava no meu filho.
E depois do nascimento do seu
filho? Esses comportamentos por parte do seu ex-marido mantiveram-se?
Após
o nascimento do meu filho as atitudes dele pioraram. Fez com que deixasse de
trabalhar para tratar do meu filho e passou a dar dinheiro apenas para o meu
filho. Não queria saber se eu tinha o que comer ou vestir. Chamava-me nomes e
um dia, quando eu tento reagir, dá-me o primeiro estalo na cara e diz que eu
sou uma vadia e que tenho de andar como ele quer. A partir daí, se eu saía de
casa, dizia que eu tinha amantes e que eles me pagavam o que eu queria e que me
tirava o meu filho. Fiquei em pânico. Perdi toda a minha auto-estima e
afundei-me. Fiquei com uma grande depressão.
O que é que sentiu ao levar o
primeiro estalo?
Uma
grande revolta. Ele estava a tirar-me a vida aos poucos. Fazia-me sentir com
nojo de mim própria porque eu achava que não tinha valor nenhum. E depois tinha
um filho e só pensava no bem-estar dele. E aguentei.
Após o primeiro estalo, que tipo de
violência se seguiu?
A
verbal. Doía-me mais do que um estalo. Ele chamava-me muitos nomes. Chamava-me
porca, dizia que eu era uma puta sem valor. Dizia que eu ia viver como uma
cadela de rua e que ia fazer tudo para me deixar mal. E acabava comigo mais e
mais. Quando bebia, as coisas pioravam. Saía com os amigos e quando chegava a
casa partia tudo. Eu era obrigada a trancar-me com o meu filho no quarto, que
não parava de chorar, para ele não nos fazer nada. Uma vez arrombou a porta e
deu-me socos e pontapés à frente do meu filho.
Que idade tinha o seu filho quando
isso aconteceu?
Tinha
seis ou sete anos.
Qual foi a reacção dele?
Agarrou-se
ao pai, aos gritos, e a pedir para ele parar. Só gritava e chorava.
E o seu ex-marido não parou?
Não.
Só dizia que eu tinha de levar por ser uma puta ordinária. Eram estas as
palavras dele à frente do meu filho.
E mesmo assim aguentou durante
muitos anos…
Eu
tinha medo dele e ao mesmo tempo sentia amor. Foi o único homem que tive. Era o
pai do meu filho.
Éramos muito novos e eu não conhecia outra realidade
senão aquela…
Como é que era o ambiente em casa
quando estavam todos juntos?
Depende…
Se ele não bebesse era agressivo mas não passava disso. Se tivesse bebido, aí
sim, era de terror. O meu filho, com medo, fechava-se no quarto. Chorava. Assim
que ouvia a porta de casa abrir, ao saber que era o pai, tremia de medo. E eu
ficava igual. Fingia muitas vezes que estava a dormir só para ele não me bater
ou implicar comigo.
Quando ele a agredia física e
verbalmente dava-lhe algum motivo para o fazer?
Não.
Fazia-o pegando nas mais pequenas coisas como estar frio e eu ter a janela do
quarto aberta para o quarto apanhar ar.
Nunca pediu ajuda a amigos ou
familiares?
Amigos
deixei de ter quando casei. Ele não permitia. Se saía com amigas ele dizia que
andávamos a fazer o que não devíamos. Se tivesse amigos ele dizia que eu andava
com eles e que era uma puta e que me punha fora de casa.
E a sua família?
A
minha família não tinha capacidades para me ajudar. A certa altura, como eu
própria desistia de mudar de vida por medo, eles desistiram e pensaram que eu
nunca sairia desta vida.
Alguma vez apresentou queixa às
autoridades?
Apresentei.
E depois? O que é que aconteceu?
Que ajuda é que lhe foi prestada?
Na
verdade não surtiu grande efeito. A polícia foi à minha casa, acalmou os ânimos
naquela noite e foi embora. Não fui acompanhada. Não tomaram medidas. E eu, não
tendo para onde ir, fiquei em casa e a revolta dele aumentou. Passou a dizer
que me matava se eu voltasse a fazer queixa dele.
Desistiu da queixa que fez?
Desisti.
Alguma vez pensou em morrer para
acabar com o sofrimento?
Pensei
muitas vezes. Tentei fazê-lo com comprimidos mas a seguir lembrei-me do meu
filho. Vomitei tudo e desisti. Foi um momento de fraqueza muito grande. Já não
tinha esperança.
A certa altura, a sua atitude muda
e decide enfrentar esta má fase. O que é que mudou?
Foi
o meu filho que me fez mudar. Depois de uma violenta discussão, o meu filho
agarrou-me a chorar e disse que não aguentava mais. Respirei fundo, pensei nele
e percebi que aquela situação não podia continuar.
O que é que fez?
Procurei
ajuda. Procurei uma amiga que não via há muito tempo e pedi-lhe ajuda. Fiquei
em casa dela com o meu filho, encontrei emprego e apresentei queixa do meu
ex-marido. A partir daí tudo mudou. Mudei de contacto telefónico e tive de ser
muito forte.
Ele deixou de procurá-la?
Não.
Ele bem procurou mas eu mudei-me para longe. De certa forma tive de fugir
porque a polícia não nos protege. Não nos dá garantias e não faz os agressores
ficarem longe.
Teve medo?
Tive.
Tive muito. Mas o olhar do meu filho fez-me mais forte. Depois fui conhecendo
outras pessoas que me deram muita força e me mostraram o meu valor enquanto
mulher. Foi fundamental mudar de realidade. Foi fundamental ter um emprego.
Que caminho seguiu esta história?
Fomos
a tribunal. Um ano depois, claro. Foi um longo caminho. Muito demorado e
penoso. Com riscos. Mas foi feito, graças a deus. Ele não foi condenado por não
existirem factos suficientes que comprovassem as agressões. É o estado
miserável da nossa sociedade que só age quando as mulheres morrem nas mãos destes
homens cobardes.
Como é hoje a sua vida?
Hoje
é estável. Encontrei um homem que me ama verdadeiramente. Sinto-me mais segura.
Sinto-me feliz. O meu filho está feliz e vai ter uma irmã. Tenho uma vida
profissional bem-sucedida. Felizmente, tudo passou.
Da má fase que passou na sua vida,
o que é que ficou?
Ficaram
alguns traumas. É difícil confiar nas pessoas hoje em dia. Ficou a certeza de
que a minha dignidade enquanto mulher e enquanto pessoa não pode ser posta em
causa. Mas tudo se ultrapassa.
Que mensagem quer deixar às pessoas
que a vão ler?
Denunciem
estas situações sempre que tiverem conhecimento. Pode fazer a diferença na vida
de alguém. Aliás, fará mesmo a diferença. Não compactuem. Não tenham medo. A
vida tem de ser enfrentada e não só pelos nossos filhos mas também por nós.
Obrigado, “Maria”.
NOTA: Esta
entrevista foi feita há uns meses atrás quando este projecto era apenas uma
ideia. Este é um caso que merece ser divulgado. Acabou bem. Podia ter acabado
muito mal. Não fico em silêncio, de maneira alguma, perante situações deste
tipo. Espero que não fiquem também. Peço-vos que, junto dos vossos amigos,
divulguem esta história e a façam chegar longe. Esta é uma de muitas Marias que
merecem apoio, destaque e força. Obrigado!
Se não sabe como ajudar ou quem contactar em casos como este, disponibilizo os contactos úteis:
APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima)
Telefone: 213 587 900 E-mail: apav.sede@apav.pt
Em caso de emergência, deve contactar de imediato o 112 e alertar as autoridades.
Se não sabe como ajudar ou quem contactar em casos como este, disponibilizo os contactos úteis:
APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima)
Telefone: 213 587 900 E-mail: apav.sede@apav.pt
Em caso de emergência, deve contactar de imediato o 112 e alertar as autoridades.
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