domingo, 23 de fevereiro de 2014

"Maria" - Diz não à Violência Doméstica

Maria, como prefere ser chamada, foi vítima de violência doméstica. Aos 43 anos, com um filho de 12 para criar, resolveu mudar de vida e pôr fim às agressões de que era alvo.
 
NÃO SE CALE. DENUNCIE. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA É CRIME.

Olá, Maria. Este é um assunto delicado mas mostrou muito interesse em falar dele e em dar o seu exemplo, ainda que o dê sem dar a cara. Porquê?
Essencialmente porque sofri calada durante muitos anos. Vivi presa a mentiras e nada compensa este sofrimento. Nem mesmo o amor que sentimos por alguém que só nos maltrata. Quero deixar o meu testemunho a outras mulheres que possam estar a passar pelo mesmo.

Porque é que opta por não dar a cara?
Apenas para me proteger dos olhares das pessoas que normalmente olham para as vítimas de violência doméstica como coitadinhas. Não o sou e jamais quero ser vista como tal. E também para proteger o meu filho que muito sofreu com estes acontecimentos.

Quando fala da sua experiência a outras pessoas, o que é que sente que elas sentem?
As pessoas sentem pena. Julgam-me por não ter saído de casa há mais tempo e por permitir que o meu filho tenha vivido assim…

É difícil sentir esse julgamento?
É. É porque as pessoas não fazem ideia do que se vive exactamente dentro das quatro paredes. Não sabem como é duro viver esta realidade.

Como é que começou esta história de violência doméstica?
Começou aos sete meses de gravidez. A atitude do meu marido, que já era muito ciumento, mudou completamente. Começou a ser agressivo, a falar-me mal e a dizer que eu não servia para nada e que ele é que sabia da casa dele. Fazia-me sentir inútil em tudo. Só me apetecia desaparecer mas depois só pensava no meu filho.

E depois do nascimento do seu filho? Esses comportamentos por parte do seu ex-marido mantiveram-se?
Após o nascimento do meu filho as atitudes dele pioraram. Fez com que deixasse de trabalhar para tratar do meu filho e passou a dar dinheiro apenas para o meu filho. Não queria saber se eu tinha o que comer ou vestir. Chamava-me nomes e um dia, quando eu tento reagir, dá-me o primeiro estalo na cara e diz que eu sou uma vadia e que tenho de andar como ele quer. A partir daí, se eu saía de casa, dizia que eu tinha amantes e que eles me pagavam o que eu queria e que me tirava o meu filho. Fiquei em pânico. Perdi toda a minha auto-estima e afundei-me. Fiquei com uma grande depressão.

O que é que sentiu ao levar o primeiro estalo?
Uma grande revolta. Ele estava a tirar-me a vida aos poucos. Fazia-me sentir com nojo de mim própria porque eu achava que não tinha valor nenhum. E depois tinha um filho e só pensava no bem-estar dele. E aguentei.

Após o primeiro estalo, que tipo de violência se seguiu?
A verbal. Doía-me mais do que um estalo. Ele chamava-me muitos nomes. Chamava-me porca, dizia que eu era uma puta sem valor. Dizia que eu ia viver como uma cadela de rua e que ia fazer tudo para me deixar mal. E acabava comigo mais e mais. Quando bebia, as coisas pioravam. Saía com os amigos e quando chegava a casa partia tudo. Eu era obrigada a trancar-me com o meu filho no quarto, que não parava de chorar, para ele não nos fazer nada. Uma vez arrombou a porta e deu-me socos e pontapés à frente do meu filho.

Que idade tinha o seu filho quando isso aconteceu?
Tinha seis ou sete anos.

Qual foi a reacção dele?
Agarrou-se ao pai, aos gritos, e a pedir para ele parar. Só gritava e chorava.

E o seu ex-marido não parou?
Não. Só dizia que eu tinha de levar por ser uma puta ordinária. Eram estas as palavras dele à frente do meu filho.

E mesmo assim aguentou durante muitos anos…
Eu tinha medo dele e ao mesmo tempo sentia amor. Foi o único homem que tive. Era o pai do meu filho. 
Éramos muito novos e eu não conhecia outra realidade senão aquela…

Como é que era o ambiente em casa quando estavam todos juntos?
Depende… Se ele não bebesse era agressivo mas não passava disso. Se tivesse bebido, aí sim, era de terror. O meu filho, com medo, fechava-se no quarto. Chorava. Assim que ouvia a porta de casa abrir, ao saber que era o pai, tremia de medo. E eu ficava igual. Fingia muitas vezes que estava a dormir só para ele não me bater ou implicar comigo.

Quando ele a agredia física e verbalmente dava-lhe algum motivo para o fazer?
Não. Fazia-o pegando nas mais pequenas coisas como estar frio e eu ter a janela do quarto aberta para o quarto apanhar ar.

Nunca pediu ajuda a amigos ou familiares?
Amigos deixei de ter quando casei. Ele não permitia. Se saía com amigas ele dizia que andávamos a fazer o que não devíamos. Se tivesse amigos ele dizia que eu andava com eles e que era uma puta e que me punha fora de casa.

E a sua família?
A minha família não tinha capacidades para me ajudar. A certa altura, como eu própria desistia de mudar de vida por medo, eles desistiram e pensaram que eu nunca sairia desta vida.

Alguma vez apresentou queixa às autoridades?
Apresentei.

E depois? O que é que aconteceu? Que ajuda é que lhe foi prestada?
Na verdade não surtiu grande efeito. A polícia foi à minha casa, acalmou os ânimos naquela noite e foi embora. Não fui acompanhada. Não tomaram medidas. E eu, não tendo para onde ir, fiquei em casa e a revolta dele aumentou. Passou a dizer que me matava se eu voltasse a fazer queixa dele.

Desistiu da queixa que fez?
Desisti.

Alguma vez pensou em morrer para acabar com o sofrimento?
Pensei muitas vezes. Tentei fazê-lo com comprimidos mas a seguir lembrei-me do meu filho. Vomitei tudo e desisti. Foi um momento de fraqueza muito grande. Já não tinha esperança.

A certa altura, a sua atitude muda e decide enfrentar esta má fase. O que é que mudou?
Foi o meu filho que me fez mudar. Depois de uma violenta discussão, o meu filho agarrou-me a chorar e disse que não aguentava mais. Respirei fundo, pensei nele e percebi que aquela situação não podia continuar.

O que é que fez?
Procurei ajuda. Procurei uma amiga que não via há muito tempo e pedi-lhe ajuda. Fiquei em casa dela com o meu filho, encontrei emprego e apresentei queixa do meu ex-marido. A partir daí tudo mudou. Mudei de contacto telefónico e tive de ser muito forte.

Ele deixou de procurá-la?
Não. Ele bem procurou mas eu mudei-me para longe. De certa forma tive de fugir porque a polícia não nos protege. Não nos dá garantias e não faz os agressores ficarem longe.

Teve medo?
Tive. Tive muito. Mas o olhar do meu filho fez-me mais forte. Depois fui conhecendo outras pessoas que me deram muita força e me mostraram o meu valor enquanto mulher. Foi fundamental mudar de realidade. Foi fundamental ter um emprego.

Que caminho seguiu esta história?
Fomos a tribunal. Um ano depois, claro. Foi um longo caminho. Muito demorado e penoso. Com riscos. Mas foi feito, graças a deus. Ele não foi condenado por não existirem factos suficientes que comprovassem as agressões. É o estado miserável da nossa sociedade que só age quando as mulheres morrem nas mãos destes homens cobardes.

Como é hoje a sua vida?
Hoje é estável. Encontrei um homem que me ama verdadeiramente. Sinto-me mais segura. Sinto-me feliz. O meu filho está feliz e vai ter uma irmã. Tenho uma vida profissional bem-sucedida. Felizmente, tudo passou.

Da má fase que passou na sua vida, o que é que ficou?
Ficaram alguns traumas. É difícil confiar nas pessoas hoje em dia. Ficou a certeza de que a minha dignidade enquanto mulher e enquanto pessoa não pode ser posta em causa. Mas tudo se ultrapassa.

Que mensagem quer deixar às pessoas que a vão ler?
Denunciem estas situações sempre que tiverem conhecimento. Pode fazer a diferença na vida de alguém. Aliás, fará mesmo a diferença. Não compactuem. Não tenham medo. A vida tem de ser enfrentada e não só pelos nossos filhos mas também por nós.

Obrigado, “Maria”.


NOTA: Esta entrevista foi feita há uns meses atrás quando este projecto era apenas uma ideia. Este é um caso que merece ser divulgado. Acabou bem. Podia ter acabado muito mal. Não fico em silêncio, de maneira alguma, perante situações deste tipo. Espero que não fiquem também. Peço-vos que, junto dos vossos amigos, divulguem esta história e a façam chegar longe. Esta é uma de muitas Marias que merecem apoio, destaque e força. Obrigado!

Se não sabe como ajudar ou quem contactar em casos como este, disponibilizo os contactos úteis: 


APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima)
Telefone: 213 587 900 E-mail: apav.sede@apav.pt

Em caso de emergência, deve contactar de imediato o 112 e alertar as autoridades. 

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