quinta-feira, 19 de junho de 2014

Talvez quem Vê Bem não Sirva para Sentir


Fernando Pessoa 

Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrada por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as coisas,
E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo é vasto e o amor interior...!
Olho, e esqueço, como seca onde foi água e nas árvores desfolha.


Alberto Caeiro, in "O Pastor Amoroso"
Heterónimo de Fernando Pessoa

terça-feira, 10 de junho de 2014

Este rapaz mudou-me a vida...!



27 de Maio de 2012, 18h
Inicia-se a aventura que faz com que as minhas opções profissionais ganhem mais sentido ainda. Começa a emissão de rádio no Banco Alimentar Contra a Fome, apoiada pela Universidade Autónoma de Lisboa, na qual estudei. Faço parte da equipa que das 18h às 22h anima todos os armazéns do país associados a esta nobre causa. Em estúdio estão quatro pessoas que, entre muitas outras, abdicaram de parte do seu fim-de-semana para alimentar a ideia de que devemos ajudar porque um dia, sem darmos por isso, podemos ser nós a precisar deste apoio.
Entre nervos, ansiedade e muita vontade de fazer bem e cumprir a missão de animar e dar força aos que verdadeiramente trabalham nos armazéns, lá ficou decidido que além da animação em estúdio, também por grande vontade minha, ficaria a fazer reportagem de exteriores. Fi-lo por achar que a verdadeira forma de chegar às pessoas, através da comunicação, passa por estar junto a elas. O mais próximo possível, aliás.
Numa das várias intervenções que fiz em exteriores, entre pesagens e entrevistas, surgiu um jovem muito especial: o André. Abordou-me vezes sem conta. As abordagens foram estranhas, uma vez que o André apenas me puxava pelo braço pedindo-me atenção para a qual, naquele momento, não tinha tempo. Minutos depois, após terminar o directo, parei para tentar perceber o que queria o rapaz. Sem sequer imaginar, acabou por mudar-me a vida. Surdo-mudo e com algumas limitações físicas, queria que eu passasse uma mensagem para todos os que nos ouviam através da Rádio Autónoma. Pediu-me que dissesse a todos que, apesar de apenas ouvir alguns ruídos da música, estava a adorar ali estar e eu disse-lhe que passaria a mensagem no próximo directo. Duvidando de mim, pediu-me que todos os presentes no armazém levantassem os braços após ouvirem a sua mensagem, já que era a única forma de confirmar que o recado era dado. Achei quase impossível, tal era a concentração de todos os voluntários que mal se mexiam do posto que ocupavam mas, mesmo assim, comprometi-me a fazê-lo. Era o mínimo depois de perceber que aquele rapaz, com tantas dificuldades na vida, estava ali a apoiar a causa que a muitos se faz chegar por todo o país. Nervoso, inicio o directo avisando que tinha a tal mensagem a passar. Fi-lo com muita convicção porque sabia a importância que tinha para o André, mesmo achando que poucos iriam ligar ao que dizia, quando o mais importante era o trabalho que ali se fazia. 
Enganei-me. A mensagem foi passada e o armazém parou. Parou porque o André merecia. Não por ter limitações. O André merecia porque era um lutador com um grande coração. O armazém parou porque o importante é mostrar que estas pessoas também têm lugar e que esse lugar é junto de todos nós. Arrepiei-me. Caíram-me duas lágrimas de felicidade e depressa me surgiu a sensação de missão cumprida. Ganhei a noite. O André sorriu, ficou extremamente feliz e continuou a ajudar junto à zona do grão. E eu, que continuei a emissão com os meus colegas, percebi que a minha vida só pode passar por isto. Foi nesta noite que percebi o verdadeiro significado de comunicar para as pessoas. Foi nesta noite que percebi que não há volta a dar, que as pessoas são o mais importante e que é a pensar nelas que devemos trabalhar. Foi nesta noite que tudo fez ainda mais sentido e que percebi que ando nesta luta por um lugar porque estou cá pelos motivos certos.
Deste caminho, custe o que custar, ninguém me tira.

P.s.: Todos os anos marco presença nas emissões da Rádio Autónoma a partir do Banco Alimentar Contra a Fome. Todos os anos o André vem ter comigo para me cumprimentar, mostrando que jamais se esquecerá daquele momento. Eu também não esqueço. O André mudou a minha vida. Espero ter melhorado a dele.